A técnica de enfermagem Celícia de Vasconcelos Pereira Neres, 37, conta ter tido um dia de trabalho traumatizante na última quinta-feira (19). Trabalhando em turnos extras para dar conta do movimento de pacientes preocupados com o coronavírus no hospital em que trabalha, na região da Liberdade, na cidade de São Paulo, ela relata momentos de medo ao ser hostilizada e até agredida tanto na ida quanto na volta do trabalho.
“Está acontecendo na linha azul do metrô, entre as estações Vergueiro e São Joaquim. Tem um grupo de pessoas que estão atacando tanto com agressões verbais quanto corporais. Empurrando, não deixando entrar no vagão”, diz. “Não só eu, mas vários colegas que estão trabalhando”.
Celícia, que mora em Mauá, no ABC Paulista, diz ter notado que havia algo errado quando tentava entrar no vagão na estação Paraíso, sentido Vergueiro, na linha azul do metrô, conhecida como “linha da saúde” por passar por diversos hospitais, clínicas e consultórios. Ela e os colegas estavam vestidos de branco, com roupas que não são suas vestimentas de proteção.
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“No começo nos xingavam, porque estávamos de branco: ‘Lá vai, passar doença para todo mundo!'”, conta a técnica.
Logo, as reclamações e agressões verbais foram se espalhando entre os passageiros.
“Começaram a xingar, agredir verbalmente, pedir para nos tirar do metrô. Tinha umas dez pessoas no vagão — jovem, idoso… Todos nos criticando, tirando foto. Começaram a dizer que não tinha que entrar no metrô, que tínhamos que ficar para fora”, conta.
“Eu respondi: vocês me desculpem, mas quem tem que ficar dentro de casa são vocês. Eu estou aqui porque eu preciso estar nos hospitais para cuidar de vocês”, afirmou a técnica de enfermagem.
Depois de um turno cheio de atendimentos no hospital — muitos relacionados ao pânico da população em relação ao novo coronavírus, segundo a profissional —, ela narra uma situação ainda pior na volta para casa.
Ao pegar um trem no Brás para Rio Grande da Serra, conta, um rapaz encostou em seu peito e disse: nesse vagão você não entra.
“Me empurrou para trás. Eu fiquei com medo e esperei vir um outro trem. Porque pensei: ‘Vai que eu vou no mesmo vagão e, como está meio vazio, ele pula e me agride aqui?'”
Os relatos de agressão e hostilidade contra profissionais de saúde têm aumentado desde ontem, segundo a presidente do Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo (Coren-SP), Renata Pietro.
“Começou ontem (quinta-feira, 19). Eu recebi pelo WhatsApp mensagens de cinco profissionais com relatos de que tiveram dificuldade no transporte público, principalmente na linha azul do metrô, que é a linha em que nós temos muito hospitais”, diz.
“As mensagens diziam: ‘Olha, não estão querendo deixar a gente entrar no vagão, uma amiga teve uma colega agredida’. Gente dizendo: ‘Sai daqui, você vai me passar doença’. Empurram, atiram objetos”, diz, acrescentando que o Coren-SP está entrando em contato tanto com esses profissionais agredidos quanto com as instituições em que eles trabalham, buscando formas de amenizar o risco em tempos de coronavírus.
“É uma situação extremamente delicada e precisamos tentar não gerar pânico, porque vamos precisar muito dessa comunidade de enfermagem, que já vem apavorada”, alerta a presidente do Coren-SP.
“E aí você fica imaginando como está a saúde mental de um profissional desse — que todo dia deixa a sua casa, todo mundo em quarentena e ele sai e deixa sua família lá, se expondo ao risco. E é hostilizado no transporte público? Como se trabalha o resto do dia?”
Em nota, a secretaria Estadual dos Transportes Metropolitanos disse que “valoriza os profissionais da saúde, que neste período prestam nobremente alta contribuição à sociedade”.
Medo e falta de informação
O técnico em enfermagem Jefferson Souza da Silva, 30 anos, que mora em Barueri e trabalha em um hospital na Liberdade, diz que já na quarta-feira (18) sentiu a mudança de clima em relação a ele no trem da CPTM por volta das 7h da manhã.
“Eu vou trabalhar de branco, normalmente. Quando eu entrei na estação de Barueri, dentro do trem, observei um movimento muito incomum, porque geralmente as pessoas sentam do meu lado. Nesse dia ninguém sentou, de Barueri até a Barra Funda”, diz. “Senti muitos me olhando com olhar torto, totalmente diferente”.
Ele acredita que o que despertou o medo foi sua roupa branca.
“O avental eu coloco só dentro da instituição, mas vou trabalhar de sapato, calça e camiseta brancos”.
Silva diz que, sem ser de transporte público, ele não teria outra alternativa para ir trabalhar. O técnico em enfermagem diz que o fluxo de trabalho tem crescido e o hospital em que trabalha, inclusive, quer contratar mais profissionais em razão da emergência.
“É complicado porque a ignorância do ser humano acaba atrapalhando todo o fluxo para o combate dessa pandemia”, diz.
Celícia conta que desistiu do transporte público e passará a ir de carro para o trabalho por conta do medo de sofrer novos ataques.
“Na hora, a vontade que dá é de recuar da profissão, já que as pessoas acham que não somos a linha de frente e não temos importância. Só que não é assim: sabemos que muitos que não têm esse pensamento maldoso não têm culpa da situação.”
Ela atribui grande parte do problema à falta de informação da população, que adota procedimentos errados e entra em pânico. As duas profissionais destacam à BBC News Brasil que obedecer as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) de restringir o contato social e lavar as mãos com água e sabão é muito mais relevante do que preocupar-se com a roupa de quem circula no metrô.
“Preocupar-se com a roupa dos outros não é uma recomendação da OMS”, diz Renata Pietro, do Coren-SP, que acrescenta que a violência contra profissionais de saúde em situações emergenciais já era um problema para o setor antes do coronavírus, alvo até de campanhas do conselho contra a violência.
“Agora, nessa questão do transporte público está sendo inédito”.
Uma portaria do Ministério do Trabalho determina que os profissionais de saúde não deixem o local de trabalho com seus equipamentos de proteção, nem com a vestimenta usada para o atendimento, como jalecos e aventais.
Celícia diz que a falta de uma campanha nacional massiva sobre a pandemia prejudica ainda mais os profissionais de saúde. Ela afirma que muitas pessoas têm superlotado os hospitais com sintomas que não necessitariam pronto atendimento, colocando a si mesmo e ao sistema em risco.
“A área da saúde está precisando disso agora. Isso é um caso de emergência, pra ontem. Precisa de campanha. Não tem o horário político, na época das eleições? Tinha que ter um horário nobre para isso. Para explicar o que é a covid-19, qual a precaução, quando procurar o hospital? Quando continuar em casa em isolamento? Está precisando muito disso. É um grito de socorro dos hospitais.”
Ela diz que muitos dos passageiros que a hostilizaram usavam máscara no transporte público, piorando o risco de contaminação.
“As pessoas que estão agredindo estão andando de máscaras no metrô. Acham que estão protegidas e a nossa roupa branca que está disseminando tudo. Não protege, pelo contrário: a máscara úmida é uma porta de entrada para o vírus, que gosta de umidade, de lugar mais frio.”
Pietro, do Coren, se diz preocupada com os tempos duros que virão para os profissionais da saúde.
“Até quando o Brasil vai andar na contramão das coisas? O mundo sai à janela, emociona, aplaude. E aqui não querem deixar os profissionais de saúde entrarem no metrô para ir trabalhar, meu Deus do céu”, lamenta.