Um consórcio composto por pesquisadores de mais de dez países, incluindo Brasil, Estados Unidos e algumas nações europeias, está realizando simulações do clima do passado e do futuro na América do Sul com resolução sem precedentes. O objetivo é criar um modelo de visualização computacional que represente com maior acurácia os processos hidroclimáticos que ocorrem na região para ajudar os tomadores de decisão a implementar medidas mais efetivas de adaptação aos impactos da mudança climática.
O trabalho foi apresentado em um painel de discussão sobre clima durante a FAPESP Week Illinois, na semana passada, em Chicago (Estados Unidos).
“Agora, estamos começando a ser capazes de representar corretamente o hidroclima da América do Sul nas escalas necessárias”, disse Francina Dominguez, pesquisadora do Centro Nacional de Aplicações de Supercomputação da Universidade de Illinois em Urbana-Champaign e coordenadora do projeto.
De acordo com Dominguez, a exemplo de todas as regiões do mundo, o clima na América do Sul está mudando. Têm sido registradas secas exacerbadas no sul da Amazônia, na região do Cerrado, no norte do Brasil e no Chile. Esse cenário tem afetado o rendimento agrícola, o abastecimento de água para reservatórios, a geração de energia hidrelétrica e impactado dezenas de milhões de pessoas nas grandes áreas metropolitanas de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Santiago do Chile, por exemplo.
As geleiras andinas, que são uma importante fonte de água, perderam 30% de sua área nos trópicos e até 60% no sul dos Andes, constituindo as mais altas taxas de perda de massa glacial do mundo. Por outro lado, o sudeste da América do Sul enfrenta o aumento das chuvas anuais e a intensificação de fortes precipitações desde o início do século 20.
“A América do Sul enfrenta duas forças gigantescas, que são as mudanças climáticas e no uso da terra, que têm ocorrido não só na floresta amazônica, mas também em outras áreas da região, como o Chaco, na Argentina. E também temos mudanças muito grandes tanto no clima global quanto no regional. Como resultado desses processos temos observado que os extremos climáticos estão mudando em todo o continente e isso põe em risco a segurança hídrica e alimentar de milhões de pessoas”, afirmou Dominguez.
As projeções climáticas futuras são baseadas em modelos climáticos globais, os chamados GCMs, na sigla em inglês. A despeito de terem avançado muito nas últimas décadas, essas representações conceituais do clima global são incapazes de capturar detalhes do hidroclima da América do Sul e apresentam distorções significativas, ponderou a pesquisadora.
Parte desse problema está relacionado com a resolução espacial grosseira desses modelos, cujo espaçamento de grades horizontais, que representam a terra e os oceanos, é da ordem de dezenas de quilômetros (km). Por isso, não conseguem representar corretamente processos que ocorrem em escalas menores e em regiões montanhosas, como chuva de relevo – que surge quando nuvens encontram obstáculos como serras e montanhas –, além de queda de neve acumulada em montanhas e geleiras.
“Por meio dos GCMs atuais não é possível ver topografias complexas e isso representa um problema na América do Sul, onde há os Andes e outras áreas com essa característica”, afirmou Dominguez.
Os GCMs também não conseguem representar realisticamente ciclones, jatos de baixo nível – estreita zona de ventos máximos que ocorre nos primeiros quilômetros da atmosfera – e tempestades de sistemas conectivos organizados.
“Em regiões da bacia do rio da Prata, assim como em São Paulo e outras grandes áreas urbanas e agrícolas na América do Sul, a convecção organizada é um dos mecanismos mais importantes de precipitação e não está corretamente representada nos modelos climáticos globais”, disse Dominguez.
Com base nessa constatação, os pesquisadores realizaram, por meio de um consórcio de pesquisa batizado de South America Affinity Group, duas simulações computacionais de modelo de pesquisa e previsão do tempo (WRF, na sigla em inglês de weather research and forecasting model), com alta resolução sem precedentes de espaçamento de grade de 4 km, representando climas históricos e futuros do continente.
O objetivo é empregar a simulação histórica para validar o modelo e compreender melhor as características hidroclimáticas do continente com maior nível de detalhe e usar a simulação climática futura para avaliar as alterações que devem ocorrer na América do Sul sob um clima mais quente.
“Esse é um grande esforço que envolve mais de cem cientistas, muitos deles do Brasil e, em grande parte, de São Paulo”, disse Dominguez.
Baixo desempenho computacional
De acordo com Kelvin Droegemeier, professor de ciências atmosféricas da Universidade de Illinois em Urbana-Champaign, nos últimos anos têm sido desenvolvidos modelos do sistema terrestre incrivelmente sofisticados, representando a atmosfera, o gelo, os oceanos e os ciclos biogeoquímicos, entre outros elementos.
Esses modelos requerem computadores muito poderosos para fazer as integrações de longo prazo. O problema, contudo, é que eles só conseguem atingir uma pequena fração da capacidade máxima das máquinas atuais.
“Os modelos atuais só atingem entre 2% e 3% de uma máquina exascale [tipo de computação de alto desempenho com capacidade cerca de mil vezes mais rápida do que a dos mais poderosos supercomputadores em uso]. É como se esses modelos fossem uma Ferrari ou um carro de corrida de Fórmula 1 e só pudessem ser dirigidos a uma velocidade de 25 quilômetros por hora”, comparou o pesquisador.
Além disso, os modelos apresentam problemas de resolução e de física e são incapazes de capturar detalhes, como processos que acontecem em regiões como a América do Sul. “Esses modelos têm muitos problemas, mas a culpa não reside neles e sim nos sistemas onde eles estão sendo executados”, ponderou Droegemeier.
A fim de avançar na capacidade computacional para rodar os modelos do sistema terrestre, a universidade norte-americana realizará um encontro internacional entre o fim de setembro e o início de outubro deste ano voltado a desenvolver um sistema computacional para ciência do sistema terrestre de fronteira em simulação e projeção climática.
“O objetivo será discutir sobre onde estão os sistemas computacionais que nos permitirão executar esses modelos em altíssima resolução global. Temos as partes interessadas, como fabricantes de chips como a NVIDIA e a Intel, em participar da discussão”, contou o pesquisador.
A universidade norte-americana também está desenvolvendo um conceito para criar um centro nacional de previsão de eventos extremos causados por mudanças climáticas e outro sobre ciência da previsibilidade e suas aplicações, anunciou Droegemeier.
O painel dedicado a estudos sobre o clima foi realizado no dia 10 de abril e também contou com a participação do professor da Universidade de São Paulo (USP) Marcos Buckeridge.
Mais informações sobre a FAPESP Week Illinois estão disponíveis em: fapesp.br/week/2024/illinois.
Marcos Buckeridge (em pé), Francina Dominguez e Kelvin Droegemeier (foto: Elton Alisson/Agência FAPESP)