Os talibãs têm vindo a pavonear-se nas redes sociais e nas ruas de Cabul com equipamento militar deixado pelos Estados Unidos às forças afegãs. Uniformes e botas de combate, balaclavas e coletes de proteção substituíram as tradicionais sandálias, túnicas, calças e turbante. E em vez das velhinhas espingardas Kalashnikov AK-47, os islamitas empunham agora M4 e M16 norte-americanas e, às vezes, usam óculos de visão noturna e miras avançadas.
A quantidade e qualidade de armamento deixado no Afeganistão pelos Estados Unidos transformam contudo os talibãs, considerados terroristas pelas Nações Unidas e pela maioria das potências mundiais, numa das forças militares mais bem equipadas da região.
“Devido à negligência desta Administração e à retirada do Afeganistão feita às pressas, deixaram equipamento no valor de 85 mil milhões de dólares nas mãos do nosso inimigo, os talibãs”, indigna-se Jim Banks, representante republicano no Congresso, um ex-oficial que em 2014 foi colocado no Afeganistão integrado na Marinha norte-americana enquanto responsável pelas Vendas Militares Externas.
“Têm óculos de visão noturna, armaduras corporais e, incrivelmente, os equipamentos biométricos que incluem as impressões digitais, impressões de retina e informação biográfica de todos os afegãos que nos ajudaram e estiveram ao nosso lado nos últimos 20 anos”, explicou.
Apesar do perigo, o Presidente Joe Biden não anunciou quaisquer planos para reaver as armas ou a tecnologia, acusou Banks.
“Se quaisquer destas armas ou este equipamento militar for utilizado para prejudicar, ferir ou matar um americano agora ou em qualquer momento no futuro, esse sangue estará nas mãos de Biden“, rematou na sua entrevista à revista do Townhall, um grupo de notícias norte-americano conservador.
Nas últimas duas décadas, os Estados Unidos investiram cerca de 83 mil milhões de dólares no treino e equipamento das forças de segurança afegãs, de acordo com The Hill, o jornal do Congresso dos EUA.
A mesma publicação detalha que, “entre 2003 e 2016, foram transferidos 75.898 veículos terrestres, 599.690 armas, 162.643 equipamentos de comunicação, 208 aparelhos aéreos e 16.191 partes de equipamento de vigilância, informação e reconhecimento”, de acordo com um relatório do Gabinete de Contas da Administração.
“De 2017 a 2019, os Estados Unidos deram ainda às forças afegãs 7.035 metralhadoras, 4.702 Humvees, 20.040 granadas de mão, 2.520 bombas e 1.394 lançadores de morteiros, entre outro equipamento”, conforme um relatório de 2020 do SIGAR, acrescenta o The Hill.Onde pára tudo isto? Parte foi confiscada pelos talibãs, parte estará em parte incerta, levada por forças afegãs apostadas na resistência, outra ainda terá sido levado além fronteiras, ou desviada por senhores da guerra afegãos, por grupos armados ou por contrabandistas. Ninguém sabe ao certo.
O responsável pela agência de venda de armas russas já veio dizer que os talibãs capturaram mais de uma centena de helicópteros Mi-17 Hip de fabrico russo, comprados pelos norte-americanos para os afegãos por serem marginalmente mais simples de operar e manter do que os UH-60 Black Hawk.
A revelação foi feita por Alexander Mikheev, líder da exportadora estatal Rosoboronexport, à agência de notícias Interfax e indica uma estimativa consideravelmente superior ao inventário oficial.
Já há vídeos de combatentes talibãs a pilotar estes helicópteros, mas não surgiram ainda relatos de que tenham sido utilizados em combate. Mikheev acredita que muitos destes aparelhos não estejam operacionais por falta de manutenção.
O republicano Jim Banks sublinhou à Townhall que a sua missão enquanto oficial de aquisições no Afeganistão “era ajudar na compra e venda de equipamento militar americano, entrega-lo aos afegãos e treina-los a utilizá-lo”. Sabe por isso precisamente o que ficou para trás e enumera-o. Uns “75.000 veículos, mais de 200 aviões e helicópteros, mais de 600.000 armas de pequeno porte e armamento ligeiro”.
Em plena retirada militar, os Estados Unidos divulgavam planos para enviar 35 helicópteros Black Hawk e mais três A-29 Super Tucano, o mais rápido e capaz avião de combate aéreo de proximidade da força aérea afegã, além das duas dezenas destes últimos aparelhos já fornecidas desde 2016 ao abrigo de protocolos da NATO.Em setembro de 2020, quando quatro A-29 foram recebidos pela força aérea do país, o então ministro da Defesa Asadullah Khalid, considerou-os uma “garantia do empenhamento da NATO com as Forças Afegãs”, um “bom exemplo da sua cooperação que irá continuar até à derrota do terrorismo no país e na região”.Sabe-se que, até 30 de junho, as forças afegãs tinham 211 aparelhos aéreos entregues pelos Estados Unidos no seu inventário, conforme foi referido num relatório do inspetor-geral para a Reconstrução do Afeganistão, SIGAR.
Pelo menos 46 destes aparelhos estão agora no Uzbequistão, uma antiga república soviética vizinha do Afeganistão que mantém aliada próxima da Rússia, para onde mais de 500 tropas afegãs fugiram a bordo dos aviões, durante o colapso de Cabul.
Ninguém sabe bem quanto armamento foi confiscado pelos talibãs, mas a Administração Biden reconhece que será “uma quantidade considerável”.
Decisão “deliberada”
O conselho do Pentágono poderá ter sido fulcral na decisão. John Kerby, assessor de imprensa das forças norte-americanas, reconheceu que a decisão de deixar para trás o equipamento em vez de o destruir ou transferir para outras bases no Médio Oriente foi “muito deliberada”.
A aposta, considerou por seu lado Elias Yousif, será que os talibãs poderão estar ansiosos de usar o armamento mais avançado, incluindo os aparelhos aéreos, mas não poderão mantê-lo operacional ou a voar no longo prazo, mesmo que conseguissem pilotos, devido à falta de peças e de manutenção.“Os afegãos e os Estados Unidos levaram muito tempo a desenvolver uma capacidade aérea localmente e mesmo então, eles dependiam dos norte-americanos para manter estes aviões no céu”, referiu o analista.
A preocupação mais imediata, disse Yousif, é a quantidade imensa de armas de pequeno porte deixadas para trás. “São fáceis de manter, fáceis de aprender a manejar, fáceis de transportar”.
“O problema com todas as armas pequenas é que são bens duráveis e podem ser transferidas, vendidas. Já assistimos a isto antes, quando uma guerra termina e as armas ali deixadas aparecem depois em todos os cantos do mundo”.
Quarta-feira, mais de duas dezenas de senadores republicanos exigiram um “relatório completo” do equipamento militar entregue às forças afegãs nos últimos 12 meses, do que foi confiscado pelos talibãs e que planos existem para recapturar ou destruir o equipamento.
“Ao ver as imagens do Afeganistão à medida que os talibãs retomavam o país, ficamos horrorizados por ver equipamento norte-americano – incluindo UH-60 Black Hawks – nas mãos dos talibãs”, referiu a carta assinada por 25 senadores liderados por Marco Rubio e enviada ao secretário de Defesa, Lloyd Austin.“É inconcebível que equipamento militar de alta-tecnologia pago pelos contribuintes norte-americanos tenha caído nas mãos dos talibãs e dos seus aliados terroristas”, acrescentava a missiva. “Garantir a segurança de bens norte-americanos devia ser uma das principais prioridades do Departamento de Defesa antes de anunciar a retirada do Afeganistão”.
O chefe do estado Maior das Forças Armadas dos EUA, o general Mark Miller, referiu que a prioridade atual é retirar civis norte-americanos e afegãos, enquanto declinava comprometer-se com futuras ações quanto ao armamento, apesar de afirmar “não querer ver o nosso equipamento nas mãos de quem age contra os nossos interesses”.
“Há múltiplas escolhas a ponderar, incluindo a destruição”, afirmou Miller, concluindo que a decisão “ainda não foi tomada”.
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